CRP-16/ES orienta a categoria e apoia a rede de proteção e acolhimento das pessoas vitimadas por violência sexual
O Conselho Regional de Psicologia da 16ª Região (CRP-16/ES) vem a público manifestar-se diante do crime de violência sexual contra uma criança do interior do estado do Espírito Santo, que foi acompanhado por preocupante repercussão midiática e divulgação de dados sigilosos da vítima em redes sociais. Infelizmente, o fato repercutido não é um caso isolado na realidade regional e nacional, tornando oportunas orientações referentes à atuação profissional da(o) psicóloga(o) diante de casos de suspeita ou confirmação de abusos e violência sexual, bem como sobre a participação de psicólogas(os) nos veículos de comunicação e em mídias sociais digitais. Nesse sentido, trataremos de orientações a respeito dessas situações de violência e das medidas para a garantia de direitos e defesa da dignidade humana, entre esses, o direito à preservação da imagem e da privacidade, o direito aos cuidados em saúde e à proteção social, e o direito ao abortamento.
Dados da Vigilância Epidemiológica do Espírito Santo refletem o triste panorama do estado com relação a violência praticada contra crianças e adolescentes e contra mulheres. No ano de 2018 foram notificados 3.342 casos de violência sexual de pessoas na faixa etária de 0 a 18 anos. De acordo com Dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2019, foram registrados 480 estupros e 124 tentativas de estupro no Espírito Santo, sendo que 80% das vítimas eram mulheres. Importante observar que, além das mulheres cisgênero, as violências e abusos sexuais são muito frequentes e pouco notificados quando se trata de mulheres trans, travestis e homens trans.
Considerando que a subnotificação é uma realidade para todas as situações de violências sexuais, e que pode se verificar agravada no contexto da pandemia da Covid-19, ressalta-se que este número não expressa a totalidade de casos, tornando o cenário ainda mais alarmante. Tendo em vista a dimensão preocupante desses episódios de violência e de seus impactos psicossociais, destacaremos orientações para atuação nessas situações.
É necessário especial atenção ao lidar com casos que envolvem crianças e adolescentes. Nos diversos contextos e espaços de trabalho que ocupa, a(o) psicóloga(o) pode vir a realizar atendimentos a crianças e adolescentes em situação de violação de direitos que envolvem violência ou abuso sexual. Sendo assim, é necessário que, para a atuação, a(o) profissional se aproprie das normativas da categoria e legislação vigente, em especial do Estatuto da Criança e Adolescente (ECRIAD), para que sejam respeitados e garantidos os direitos fundamentais da pessoa em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Uma das consequências da violência sexual é a gravidez indesejada decorrente do crime de estupro. O art. 128 do código penal permite, desde 1940, que seja realizado o abortamento nos casos de gravidez advinda do estupro e de riscos à vida da pessoa gestante. Para tanto, em hospitais que realizam o procedimento, costuma-se constituir equipes de referência para a demanda, as quais, geralmente, contam com psicólogas(os), que têm a importante função de acolher e acompanhar essas pessoas antes, durante e após o processo. Considerando se tratar de um direito muitas vezes atravessado e contornado por inúmeros tabus e, por conseguinte, de difícil manejo social, exige-se da(o) psicóloga(o), além das intervenções técnicas, uma postura tenaz e firme no sentido da garantia e do qualificado acesso a esse serviço, como um direito e como defesa da dignidade humana. Quando a gravidez decorrente de estupro ocorre na infância, abaixo dos 14 anos, há também o risco à saúde e à vida da criança ou adolescente gestante, sendo necessária intervenção o mais precoce possível para as melhores condições do acesso ao abortamento, caso esse seja o desejo da gestante. Destacamos que, nas situações de abuso e violência sexual contra crianças e adolescentes abaixo de 14 anos, trata-se sempre de estupro de vulnerável, isto é, os marcos legais e biopsicossociais apontam para uma condição em que não há consentimento sob qualquer circunstância.
Nesta perspectiva, cumpre ressaltar que, ao acolher uma criança ou adolescente em situação de violência (suspeita ou confirmada), a(o) psicóloga(o) deve sempre realizar a Notificação Compulsória. A Notificação Compulsória dessas e outras violências, no âmbito da Saúde Pública, não é uma forma de denúncia, mas sim um meio de defesa e garantia de direitos, que se integra a ações de acolhimento, de proteção social e de cuidado às pessoas em situação de violência. Para orientações precisas sobre o acesso e preenchimento da ficha de notificação compulsória, a(o) psicóloga(o) precisa entrar em contato com a vigilância epidemiológica do município onde ocorreu o fato, que está lotada, via de regra, na secretaria municipal de saúde.
Nos casos de suspeita ou confirmação de abusos e violências praticados contra crianças e adolescentes, deve-se fazer também a Comunicação Externa Obrigatória, como determina o Art.13º do ECRIAD: “Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”. (Redação dada pela Lei nº 13.010, de 2014). Sendo assim, compete à(ao) psicóloga(o) comunicar ao Conselho Tutelar os casos que venham a tomar conhecimento durante o exercício de suas atribuições profissionais que se enquadrem no referido artigo.
Destaca-se que, tanto a notificação compulsória quanto a comunicação externa ao sistema de proteção da criança e adolescente, não conflitam com o previsto no Código de Ética Profissional do Psicólogo (CEPP) no que se refere ao sigilo profissional, uma vez que os Artigos 9º e 10º estabelecem que, ao tomar conhecimento de situações que desrespeitem os princípios fundamentais que regem a profissão, a(o) psicóloga(o) poderá decidir pela quebra de sigilo. Acrescenta-se a isso o imperativo legal previsto no Art.13 do ECRIAD, que torna a quebra de sigilo nos casos de violência a crianças e adolescentes um dever, e não apenas uma escolha.
Ainda no que diz respeito a quebra de sigilo profissional é importante frisar que, conforme parágrafo único do Art.10º, em comunicação feita aos órgãos competentes, a(o) psicóloga(o) deverá restringir-se a prestar as informações estritamente necessárias, a fim de se promoverem medidas em benefício e proteção da(o) atendida(o), bem como na busca do menor prejuízo nos parâmetros do Art.9º. Ou seja, é preciso que a(o) profissional busque os encaminhamentos necessários para cumprimento da lei expondo minimamente a(o) atendida(o), cabendo às entidades competentes a averiguação do caso e a adoção das medidas cabíveis.
Uma recomendação faz-se indispensável à categoria de psicólogas(os) e diz respeito à sua participação em atividades nos veículos de comunicação e em mídias sociais digitais. Em quaisquer meios de repercussão pública, a(o) psicóloga(o) deve sempre atentar-se ao compromisso ético da profissão ao emitir seus posicionamentos, observando o disposto no princípio VI e no Art. 19 do CEPP: “O psicólogo, ao participar de atividades em veículos de comunicação, zelará para que as informações prestadas disseminem o conhecimento a respeito das atribuições, da base científica e do papel social da profissão”.
Sobretudo no que diz respeito aos casos de violência e violação de direitos, nos quais é preciso adotar uma postura ainda mais cuidadosa e protetiva, recomendamos que pronunciamentos profissionais considerem o funcionamento dos serviços especializados, o contexto da rede protetiva e a defesa de direitos pertinentes a esses casos, tendo em vista questões técnicas, legais e éticas envolvidas nessa atuação que devem ser consideradas para que não se incorra em especulações que não tenham respaldo no campo e no contexto desses serviços. Enfatizamos que pronunciamentos públicos devem sempre resguardar a imagem e a identidade das pessoas atendidas, garantindo seu sigilo, pois a repercussão midiática pode ocasionar ou agravar processos de estigmatização e revitimização, adicionando mais sofrimento aos envolvidos.
Reforçamos que é de extrema importância o investimento público na continuidade, ampliação e aprimoramento dos serviços para acolhimento de vítimas de violência sexual, que precisam ter equipes próprias e condições adequadas para todos os protocolos e ações que se façam necessários. Este acolhimento, cumpre destacar, não se restringe ao abortamento, abrangendo atendimentos e acompanhamento psicológico, em atuação multiprofissional e articulada com a rede de atenção em saúde e de proteção social.
Considerando que as medidas de distanciamento e isolamento social trouxeram impactos para a capacidade protetiva da convivência comunitária, a rede de atenção básica do SUS e serviços de proteção social do SUAS, que regularmente atuam no acolhimento inicial das pessoas em situação de violência, devem contar com todos os recursos necessários para a manutenção do acompanhamento dos seus territórios de atuação. Em especial neste contexto de pandemia em que serviços de convivência, escolas e centros comunitários, tiveram suas atividades presenciais reduzidas ou suspensas, para garantir a saúde e a vida de toda a população.
Por fim, em alusão à recém publicada Resolução CFP nº 008/2020, compreendemos o enfrentamento das diversas formas de violência de gênero enquanto dever associado à promoção de saúde e qualidade de vida das pessoas e das coletividades. Desse modo, apoiamos profissionais e serviços que atuam no atendimento às pessoas vitimadas por abuso, exploração e violência sexual, desde o acolhimento inicial e ações educativas ou preventivas, ao acompanhamento posterior e às medidas necessárias quando constatadas as violências, reafirmando a importância da atuação de psicólogas(os) nesses serviços. E ressaltamos, entre esses, nosso apoio a profissionais e serviços que cotidianamente garantem o direito ao abortamento legal, mesmo diante da precarização dos serviços, das restrições de protocolos e dos ataques à laicidade do Estado.
VI Plenário do Conselho Regional de Psicologia da 16ª Região/ES