No Dia Nacional da Luta Antimanicomial, depoimentos de usuários reafirmam que o “cuidado em liberdade é essencial”
Puxado pelo Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial, as atividades em lembrança ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18 de maio) reafirmaram muitas das palavras de ordem do movimento. E isso não foi provado pelas/os trabalhadoras/es ou por simpatizantes da luta. Mas sim pelos usuários da política de saúde mental.
As ações aconteceram na Assembleia Legislativa do Espírito Santo, na sexta-feira, 18. A lembrança à data começou com uma atividade cultural em frente da Ales. Na sequência foi realizado um debate no auditório da Casa Hermógenes Lima da Fonseca. O CRP-16, por meio de sua Comissão de Saúde, apoiou e participou dos trabalhos. A vice-presidente do Conselho, Carolina Roseiro, marcou presença no debate, que contou com a participação de outras psicólogas e psicólogos.
A mesa “Resistências e Lutas em Defesa do SUS e das Políticas Públicas” foi marcada por reivindicações: em favor de mais investimentos públicos na saúde pública, na política de saúde mental e contra as privatizações do SUS; pelo fim dos manicômios; pela construção da cidadania e pelo fortalecimento da democracia. E também por críticas em função das alterações na Política de Saúde Mental e na Política sobre Drogas.
Após o debate, os usuários começaram a falar sobre as suas experiências. Elas/es mostravam que, apesar da falta de profissionais e investimentos, o tratamento em liberdade, nos Centros de Atenção Psicossociais (Caps) e em demais instrumentos do SUS, é melhor que a privação do contato com a família, amigos; é melhor que o aprisionamento; é melhor que o tratamento em comunidades terapêuticas e/os hospitais psiquiátricos. Isso, obviamente, à exceção dos casos em que a internação é o último recurso.
Uma das falas mais emocionantes, que trouxe lágrimas a psicólogas e outros profissionais da luta que estavam na mesa e no plenário, foi a da usuária do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Vitória, Sulamita Gomes Ferreira.
Aqui, no entanto, o CRP-16 traz o relato da psicóloga Rafaela Amorim, militante do Núcleo, sobre a fala que Sulamita proferiu no auditório da Ales.
“Com um cartaz nas mãos que diz sobre a luta pela vida, porque alguém pode estar se inspirando em você, ela expressa como a sociedade patriarcal é dura para nós mulheres e como isso afeta a nossa saúde mental.
Sulamita é uma mulher guerreira, usuária do CAPS em Vitória, mãe, desempregada. Já tentou suicídio algumas vezes e tem uma história de vida muito dolorosa, de preconceito e de muita violência. É o machismo na alma, que como ela diz: nem minha família, nem meus amigos e nem a igreja entendem.
Até os 05 de idade, ela tinha um sorriso nos lábios. Dos 05 anos até os 13 anos, foi estuprada, sendo descoberto pela família, porque foi parar no hospital. Sua família a condenou. Seu pai a culpabilizou. Ele sentiu nojo dela e a expulsou de casa. Com 13 anos, ela foi morar na casa de uma família para cuidar de outra criança, que caiu de seus braços. Sem esperanças na vida, ela roubou a patroa, porque queria que o marido dela a matasse.
Ela cresceu em meio a depressão e a repulsa de sua família. Casou-se, teve filhos e o seu sofrimento mental só piorava. Passou a apresentar momentos de esquecimentos graves, como sobre o endereço de sua moradia. Tentou suicídio e não teve acesso aos cuidados necessários para o seu sofrimento.
Tentou acessar a saúde via Justiça, que lhe entregou um papel dizendo que ela precisava esperar. Oras, ela já esperava há 03 anos por uma consulta com o psiquiatra. Com este papel, ela se direcionou para a ponte e desistir da vida. Neste meio tempo, seu pai faleceu e ela sonhou com ele, em que este homem dizia para ela não desistir da vida porque alguém se inspiraria nela.
Sulamita diz que teve um surto e foi parar no HEAC. Ao acordar lá, ela se sentiu numa gaiola e pensou: Se eu cheguei no fundo do poço, eu estou nele. Neste momento, ela disse para si mesmo que precisava reagir. Foi para o CAPS em Vitória e acolhida por um profissional chamado Fábio (e agradecemos a ele por isso).
No CAPS, ela inicia um cuidado do seu sofrimento, da sua dor. Sulamita fala com todas as palavras que não consegue trabalho por causa do transtorno mental. Retrata todo preconceito que uma mulher, pobre e com transtorno mental passa neste mundo capitalista.
Todo mundo se afetou pela sua história. Nós choramos junto com ela. Foi difícil ouvir. Não desceu. Não digeri.
Temos muita luta ainda pela frente. Mas, de certa forma, entendo que a nossa luta não foi em vão.
Sulamita hoje não está na gaiola do manicômio, como ela mesma se viu no HEAC. O cuidado em liberdade é essencial e ontem pudemos ouvi-la com palavras tão potentes”.
Psicóloga Rafela Amorim, em sua página na rede social (Facebook).
Organizado pelo Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial do ES, o debate na Ales aconteceu por intermédio da Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial da Casa.