Psicólogas/os são convocadas/os a analisar condutas e impactos de episódios de violência no Brasil
Orientações do CRP-16 evidenciam a diversidade e complexidade de áreas, campos e abordagens da Psicologia
Nos últimos dias, psicólogas e psicólogos de todo o país, em sua pluralidade de áreas e referências técnico-científicas de atuação, têm sido convocadas/os a observar, refletir, analisar e intervir quanto aos contextos, condutas e impactos ou efeitos de violências. Esta convocação surge a partir de uma série de episódios ocorridos no mês de março, destacando-se o indiciamento de ex-policiais acusados do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson, que colocou em evidência a violência de Estado nas periferias, vinculada às milícias, área de interesse do campo das políticas públicas e que coloca em questão as garantias constitucionais da democracia, que importam a qualquer cidadã ou cidadão. Destaca-se, ainda, o massacre de Suzano, em São Paulo, em que dois ex-alunos de uma escola entraram no estabelecimento de ensino e mataram alunos e funcionários com saldo de 10 mortos, incluindo a dupla que cometeu suicídio.
Diante da urgência do tratamento da violência como matéria da Psicologia e do clamor social para um olhar desta ciência sobre o cruel massacre de Suzano, o CRP-16 busca uma orientação ética comum diante da complexidade da profissão, composta por diversas áreas, campos e abordagens. É preciso ressaltar que, diante das recorrentes tragédias, as orientações do Conselho evidenciam esta complexidade e pluralidade da Psicologia.
Essa postura é válida para todos os fenômenos que a Psicologia possa investigar e todas as áreas em que possa intervir. Contudo, nos contextos de violência o cuidado para que não se destitua qualquer dos diversos saberes que compõem um mesmo campo deve ser redobrado, considerando que este campo é interdisciplinar e multiprofissional e atende a uma demanda primordial da civilização: a sua própria integridade, diante de episódios extremos de desagregação, como o ocorrido em Suzano-SP.
Acolhimento
A Prefeitura de Suzano disponibilizou 150 profissionais da rede própria e outros 80 voluntários, logo após o ataque, para atuarem no acolhimento e acompanhamento das famílias, feridos e pessoas próximas às vítimas com atendimentos individuais e informações repassadas por representantes oficiais do Governo do Estado e da municipalidade. O trabalho inclui, ainda, o auxílio no retorno das/os alunos à vida escolar. As equipes são multidisciplinares envolvendo psicólogas/os, assistentes sociais, médicas/os psiquiatras, enfermeiras/os e terapeutas ocupacionais.
O acolhimento às vítimas se apresenta para profissionais do campo da saúde mental e das clínicas psi, bem como das intervenções especializadas em contextos de emergências e desastres, que são vinculadas ao Sistema Único de Assistência Social (Suas), mas também a atuação voluntária de profissionais que atuam em trauma e luto.
Violência
No entanto, além da atuação no acolhimento às vítimas de violência, a Psicologia também é mobilizada a investigar e compreender o ato de violência em si, seus condicionantes, motivações, causas e disparadores. De acordo com o psicólogo Getulio Souza Pinto, mestre em Psicologia Institucional, isso atende a um propósito de prevenção, voltado para os indivíduos e suas vulnerabilidades, mas também tem uma perspectiva social, histórica, e cultural. “Dessa forma, há uma abordagem das grupalidades e vínculos sociais envolvidos, das identidades, das subjetividades e de questões referentes ao desenvolvimento humano e para as relações sociais”.
O psicólogo explica que tiroteio em massa é a tradução para mass shooting, ato de violência que acontece em espaços públicos, geralmente com vítimas atingidas de forma indiscriminada e culminando, muitas vezes, com o suicídio planejado dos autores. A expressão original em língua inglesa possivelmente decorre da alarmante incidência de casos dessa natureza nos Estados Unidos, levantando a discussão sobre o acesso a armas, uma vez que o país possui uma reconhecida cultura bélica e facilidades para a aquisição legal de armas de fogo.
Além disso, Getúlio lembra que outra recorrência que leva a considerar matrizes históricas/simbólicas nessa sociedade é o histórico de consumo de jogos eletrônicos e filmes violentos ligados à indústria cultural norte-americana, que comparece nas investigações a respeito das motivações dos crimes. “Isso leva a uma terceira recorrência que é a apologia ao uso de armas e a vinculação ou acesso a grupos e ideário de supremacia branca e de misoginia, especialmente nas últimas décadas, pelo dispositivo das redes sociais e da deep web”.
Há, ainda, uma quarta recorrência, de acordo com Getúlio Souza Pinto, que leva à preocupação com o cuidado do sofrimento psíquico de que são vítimas muitos dos autores desses crimes, é do histórico de bullying nas escolas, de isolamento social e de violências, abandono, rejeição ou de extrema negligência familiar.
Medo
No cotidiano das escolas, Brasil afora, é perceptível a repercussão do ataque em Suzano nessas semanas que se seguem após o episódio. É o que explica a psicóloga Suzana Maria Gotardo Chambela, doutora em Educação e Conselheira do CRP-16. “Um novo medo, entre tantos outros que já perpassam os terrenos da educação, ganha força: de repente, começa a se levantar alunos que, por uma ou outra característica diferente, por indícios deixados em suas trajetórias acadêmicas, por risos e comentários empáticos aos assassinatos, possam disparar um novo massacre”.
A doutora em Educação adverte que o que ocorreu em Suzano não é algo específico e que não pode ser compreendido unicamente por uma análise de indivíduos e de um contexto local. Para ela, o caso da escola de Suzano escancara uma problemática que atravessa nossa sociedade: a das relações.
“Alguns estudiosos têm defendido que atualmente as escolas são, para muitos, o único espaço de socialização, pelo menos o primeiro e ‘inevitável’. É onde crianças, jovens e adultos encontram-se diariamente fora do ambiente privado do lar. Um turbilhão de afetos, onde se fazem amigos, aprende-se, dá-se risada, mas também onde violentamente, de várias formas, acontecem processos de exclusão”, disse.
A psicóloga defende que, para pensar na prevenção de situações como essa, é preciso que se coloque em análise como têm se dado as relações. Além disso, segundo ela, é necessário todo um cuidado para que não seja fomentado ainda mais terror, e procurar criar e ampliar os espaços de diálogo no dia a dia das escolas, espaços de escuta e de cuidado para com o outro.
Jogos
Para o psicólogo Eduardo Silva Miranda, mestre e doutor em Psicologia, em situações extremas como a da tragédia ocorrida na Escola Raul Brasil, em Suzano, é salutar que a sociedade busque respostas.
“Nossa raiva, indignação, tristeza e confusão se misturam a sentimentos de pesar e compaixão com as vítimas, familiares e com a situação geral da educação e da violência em nosso país. Pensamos em nossos filhos, em nossos professores e procuramos entender esse panorama de elementos que permeiam a tragédia. Um desses elementos que chamou a atenção de vários de nós reside no fato de os assassinos, um adulto e um adolescente, terem o hábito de passar tempo com jogos de videogame com conteúdo violento. O vice-presidente de nossa nação chegou a elencar o vício em jogos como um dos motivos para o ataque”, lembrou Eduardo.
Entretanto, ele chama a atenção para a necessidade de se considerar que indignação, raiva e tristeza não são bons componentes para uma análise lúcida e sólida. Não se pode apontar o hábito de jogar videogames, por mais violentos que sejam, como causa direta para uma tragédia como a de Suzano.
“Milhões de pessoas passam tempo com jogos dessa natureza e nem por isso planejam e executam ataques contra a vida de outrem. Afirmar isso não significa dizer que não devemos debater o conteúdo de tais jogos, nem suas possíveis consequências, sejam elas boas ou ruins para a vivência em sociedade. Mas é preciso compreender que contextualizar uma tragédia como a de Suzano exige a percepção de múltiplos fatores e que somente uma análise profunda, séria e abrangente poderá gerar informações capazes de criar ações que possam realmente contribuir para que coisas assim nunca mais se repitam”, considerou Eduardo, que também é coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade DOCTUM – Serra/ES.
Masculinidade
A psicóloga Marina Bernabé, conselheira do CRP-16 e mestre em Psicologia Institucional, lembra que, ao se buscar respostas para tragédias como a de Suzano, um importante aspecto que chama a atenção é que os atiradores são, majoritariamente, do gênero masculino. “Então há uma relação entre armas, violência e homens? Em uma sociedade que vêm valorizando cada vez mais a obtenção de armas, essa é uma reflexão necessária e urgente”.
De acordo com Marina, existe uma cultura que ensina que há características especificas que definem os homens, dentre elas: ser honrado, corajoso, provedor, viril e sexualmente disposto. Esses são atributos desejados, mas também socialmente impostos à maioria dos homens. Aqueles que se distanciam desses atributos passam a ser visto como menos homens.
“Disfarçada de racionalidade, esse modelo tóxico de masculinidade exige que emoções e conflitos não sejam ditos. É o famoso ‘homem não chora’. Entretanto, a sociedade aceita, justifica e muitas vezes ensina aos homens que os conflitos podem e até devem ser resolvidos por meio da agressividade e da violência, seja verbal ou até mesmo física. Frases repetidas com frequência no dia a dia expressam essa forma, como ‘homem não leva desaforo pra casa’, ‘você não é homem, não?’”, explicou Marina, que pesquisou a masculinidade em seu Mestrado.
Marina acrescenta que identificar essa realidade não significa eximir os homens da violência que cometem, mas apontar para a urgência de repensar a socialização e os modelos de homens que são construídos. As instituições como a mídia, escola, família e trabalho, devem, junto a profissionais, repensar quais formas de ser homem são valorizadas na sociedade.
A defesa da honra é outro aspecto que demostra a insuficiência da masculinidade tóxica na resolução dos problemas de acordo com a psicóloga. Centrados na honra, cerceados de expressarem problemas e dificuldades e incentivados a recorrerem à violência, crianças, jovens e até adultos do gênero masculino veem a violência como uma resposta aos problemas. Neste contexto, a defesa da honra pode justificar a retirada da vida de outros e até da própria vida.
“Há várias formas de ser uma criança, adolescente, jovem ou adulto do gênero masculino. E a sociedade precisa aceitar e encarar o desafio de discutir que ser homem é efeito da cultura, educação, relações e concepções construídas ao longo do tempo”, concluiu.